.:Of Days:.
Havia sido tudo de certa forma tão desastroso, que sabe quando algo sai tão errado que você fica adormecido, num estágio tal de dormência que parece que nada daquilo é real? Estava assim, num dia qualquer como seria qualquer outro dia, com coisas funcionando como qualquer outra coisa funcionaria, e parecendo dar tudo errado como a qualquer pessoa pareceria.
Apenas chegou em casa, e deitou-se no sofá, sem desejo e sem vontade. Sentia-se mal do estômago, tudo revirava lá dentro. Achava até que tinha febre, não sabia, mas não tinha ânimo.
Pés jogados na mesa, camisa desabotoada, calça aberta, fitava o teto como se tentasse espantar dele seus fantasmas. E lia em casa teia de aranha todas aquelas palavras que sabia verdadeiras, ditas por quem menos esperaria numa situação daquelas, como numa entrevista com a morte, onde ela lhe diz as respostas que você sempre quis ouvir...
Pode não ser o fim da estrada.
Eu bem queria te dizer um monte de coisas, mas apenas digo isto, que pode não ser o fim da estrada.
Por muitas vezes vais te desesperar, e embriagar teu corpo com os mais variados licores, uns nem tão puros como outros, e achará que nada mais faz sentido nesse novo mundo que salta bem em frente aos teus olhos. Por que quando você faz de uma única coisa o significado de tudo, essa coisa tende a se perder, é ilogicamente certo. E com isso toda a certeza flui e o chão se abre diante de teus pés.
E vais chorar e procurar desculpas pelas rachaduras da calçada, ou da tua alma, ou não encontrará problema algum onde visivelmente existem todos os problemas do mundo. E ninguém te entenderá. Não, ninguém entende o que se passa na mente de uma pessoa quando não se passa nada na mente de uma pessoa que finge não passar nada em sua mente. Ninguém entende quando você fica distraída olhando pela janela do carro enquanto ele rabisca qualquer coisa naquela folha da propaganda do prédio que juntos vocês disseram que iam comprar. E você olha de lado, como quem não tem muito interesse, assim, como quem não quer nada, como aquela namorada que vai falsamente distraída caminhando em direção à loja de chocolates para que lhe comprem um, você olha sem prestar atenção na esperança que ele simplesmente lhe mostre o que ele rabisca tão interessadamente. Mas ele pára e se distrai com algo qualquer lá fora, e num descuido você tem acesso àquelas palavras tão misteriosamente desejadas. E verás que não se trata de nenhum poema ou canção de amor à sua pessoa, não mais do que anotações cotidianas, e voltarás ao teu silêncio em direção ao sinal sempre vermelho em seu caminho. Vais corar não de vergonha. Nem de raiva. Se sentirá tola, a vida é isso.
Ninguém entenderá tua falta de respostas. E formularás mil perguntas para explicar o óbivo, se chatearás com o absolutamente nada. Ficarás doente, a febre tomará conta de teu corpo enquanto absolutamente nada acontece, a não ser a falta de algo para acontecer, e essa falta é o que te transtorna.
Vai te afogar em trabalho, e criar mil e uma situações descartavelmente imprescindíveis, em que só você poderá resolver, quando na verdade qualquer pessoa sabe resolver, exceto você, claro. Mas procurará, e se chateará por não conseguir, e se sentirá fraca e inútil, procurando desculpas pra tua inutilidade naquilo que não sabes fazer, deixando de lado todo teu suor e esforço, relegados a um segundo plano insgnificante e esquecido. Não serás modesta ao fazer isso, mas por puro egoísmo te trancarás num mundo malfeito, apenas por autojustificativa.
Lembrarás de quando criou coragem para falar sobre amor e estrelas, por que tudo é amor e estrelas. Tudo é essa coisa forte, brilhante, intensa, misteriosa, mas que um dia do nada explode, cai e morre. Por que quando a gente olha praquele céu estrelado, cheio de pontinhos pretensamente ofuscantes, plenos de um significado tão inventado quanto a raça humana, estamos na verdade observando o passado, de milhares de anos. Uma vez que o passado nos persegue, nosso presente é fadado a olhar pro céu e olhar pra ele, passando. Um passado que sequer existe mais, mas que você olha pra ele toda noite. Ele parece tão bonito de baixo, de longe. Mas se chegar perto, não agrada os ohos e machuca quem pára pra olhar assim, bem de perto...
Assim como de perto eu ouço tua respiração e quase sinto tuas lágrimas a me encharcarem a camisa xadrez, eu sei, vais chorar como julgou nunca ser capaz de chorar na vida, mas uma vez você também não julgou estar enganada como nunca esteve antes, julgou odiar como nunca odiou antes, julgou julgar como nunca havia julgados antes?... Não existe um antes, apenas o depois, que dá sentido ao agora.
E sem o teu depois, não tem mais sentido agora. E agora, sem sentido, sem depois, nada mais resta a não ser a alma transbordando pelos olhos, e poros, te fazendo vomitar no tapete verde cada segundo de todo o tempo da eternidade sem sentido, que nem essas palavras.
Perderás todo o sentido. Mas repito, não é o fim da estrada. Não ainda.
E realmente não havia sentido. Não havia sentido o tempo passar, nem que a fome chegara e fora embora, nem que a idade já pesava em decisões mal-feitas. Pegou um livro qualquer na estante e leu até adormecer. Mas não tinha certeza de que o dia seguinte seria melhor...
.:Espelho:.
Ele ficava sempre ali sozinho, sentado no canto. Sozinho e isolado. Eu, que já não estava mais sozinha, mas naquele dia sentia dor, fiquei a observá-lo.
Não que ele fosse bonito ou algo do tipo, antes pelo contrário, parecia um respeitoso senhor de idade. Havia nele um qualquer coisa de estranhamente familiar. Não pelo cigarro que fumava, visto que esse, afortunadamente, não é um hábito meu. Talvez o olhar distante por detrás das lentes fosse algo que eu já tivesse presenciado algumas vezes.
Todas as noites ele estava impreterivelmente lá. Nem trazia nas mãos livros ou cadernos. Sequer trazia alguma caneta, anotação ou qualquer indício que o denunciasse como algum aluno da universidade.
Confesso que no começo achei que somente eu o via ali, no canto. As pessoas passavam e o ignoravam, ninguém parecia dar conta dele ali. Supus ser ele minha consciência, fruto da minha imaginação, meu alter ego, algum encosto, espírito zombeteiro, enfim, ou que eu simplesmente visse "coisas". Foi numa noite em que o Paulo me falou "Eu tenho pena desse senhor, sabia? Sempre tão sozinho..." que então eu me certifiquei que não tinha enlouquecido e nem era dotada de qualquer tipo de poderes extra sensoriais.
Mas me dei conta também que era mais ou menos isso que aquele senhor despertava em mim também: um sentimento de algo como pena.
A solidão é sempre algo penoso. Quem a sente, ainda que por escolha, pena por algo irrealizável, ew quem a vê, como eu, sente pena por quase conseguir tocar essa espécie de aura que as pessoas solitárias têm.
Já notou? Pessoas (verdadeiramente) solitárias têm algum quê de mistério indefinível. Uma dolorida sensualidade que atrai o olhar, e prende. Uma vontade de se aproximar e uma intocável necessidade de se afastar exatamente para manter aquela imagem só. Eles parecem ter as chaves do céu e os cadeados do inferno.
Mas são solitários. E aquele homem ali sentado já parece desconfiar de tanto eu olhar pra ele. Amassa a garrafinha de água visivelmente incomodado. Deus, o que há de familiar naquilo tudo? Que traço tão reconhecível é esse que não consigo definir? Se bem que, olhando assim com atenção..., não, ele não se parece com meu pai...
E o incômodo de olhar o faz levantar e partir. E então, nessa mesma hora é que o paulo me abraça, e enquanto John Mayer pergunta em sua música que toca nos meus fones de ouvido se ele seria amado quando ele não é ele mesmo, e que me dou conta: aquele homem parece ser um reflexo do ser como já fui um dia, o futuro que poderia ter sido e que o presente (felizmente) não deixou...
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